Notas de uma vida
Era sua caminhada matinal diária.
Havia adquirido esse hábito devido a longas e repetíveis e longas e repetíveis e longas e repetíveis noites de insônia, causadas, talvez, pelo desconforto compreensível que uma mudança brusca de vida, de país e de sonhos tem o poder de causar – mesmo nos espíritos mais adaptáveis. Desde então, saía caminhando pela madrugada e caminhava até não restar outra coisa a fazer do que inverter a direção e caminhar de volta a tempo de chegar a casa antes de a lua chegar ao céu daquele, agora, seu país. (Que seu não seria nunca). Ninguém precisa de um segundo país para que as coisas se tornem, assim, bonitas e sublimes, num passe de mágica – a mágica não está na localização geográfica, eu lhe diria, se pudesse -, mas ela acreditava que sim, e não era de todo desvantajoso experimentar... afinal, talvez um tratamento, assim, de choque, de reviravolta fosse tudo o que aquele seu espírito já farto precisasse para encontrar sua paz. Mas talvez o motivo para a insônia nem fosse esse, fosse outro ou não fosse nenhum... talvez fosse só a solidão em que se é jogado quando sua língua não é eficaz para se comunicar com ninguém mais além de você mesmo. Ou talvez fosse só a própria vontade de caminhar para tentar encontrar, um dia, algo que existisse lá, depois de todos os horizontes – uma paz com cheiro de eternidade.
Mas talvez, também, ela só pensasse assim por não saber que pior que esquecer o passado (acontece com algumas pessoas – ouvi uma história uma vez), é querer retalhá-lo e desfazer-se dos pedaços pela estrada afora, feito João com Maria – salvo algumas diferenças (diria alguma sábia voz):
- Migalhas?
- Não. São memórias.
- Pássaros?
- Não. É o tempo.
Tempo, o corrosivo – diria essa mesma voz, se fosse qualificá-lo.
Por pior que seja um passado, nada pior que, voluntariamente, (desejar) esquecê-lo. Há sempre uma história (e inúmeras outras ligadas a ela)... e as histórias, histórias sempre serão. Há pinceladas suaves, escuras, violentas, trêmulas, hesitantes até, um sem-fim de possibilidades na aquarela do artista. Não se produz uma obra - ou a obra de uma vida - com apenas uma cor nem com um único número de pincel; além das predominâncias, há matizes, por vezes, cuidadosamente camufladas. Todo artista tem seus segredos a esconder. Não seja, por favor, o inconveniente a querer descobri-los para espalhar, depois, a altos brados sua brilhante descoberta a um mundo que não se interessa nem pelo criador nem pela criatura – que criem seus próprios segredos, se capazes forem.
Caminhava, ela, pelo meio-fio. Botas de chuva, um impermeável com capuz e uma não-direção a seguir. O mundo pela frente e os passos que se conduziam a si próprios. Os pés (de bailarina) carregavam servil e passadamente o corpo acima deles. Chuva fina. Não havia ainda, no mundo, a luz avermelhada do sol; de luz, aliás, no céu, apenas uns minúsculos pontos brilhantes – de estrelas sem sono e com uma ainda vontade de brilhar. Os pingos caíam nas poças da calçada: sons tão finos, tão ariscos, tão breves. Staccato, regia, por capricho, o maestro.
Nada é muita coisa - assim como nunca, sempre e eternidade são muito tempo (não tenho certeza de já não ter dito isso) -, e quando há muita coisa em jogo há, também, sempre uma ressalva - cabeceira da cama, criado mudo: ali repousava a mais amada lembrança jamais esquecida e totalmente impassível de apagamento: o livro. Estava aí sua única fraqueza e seu único pecado em relação a sua resolução de acabar de vez com aquela que havia sido, até então, sua vida. Talvez, então, fosse esse o motivo da insônia: era preciso desfazer-se do livro ou nenhuma de suas outras drásticas atitudes faria sentido ou traria algum resultado positivo. Mas dele ela não podia se separar. Nunca.
Mas o maior agravamento nem era, coisa em si, o livro, e sim a dádiva que carregava, ele, de levar para onde quer que fosse levado mais umas muitas lembranças a ele ligadas por algum tipo de laço. Era um volume grande (umas mil e poucas páginas), já bem manuseado, que ela folheava toda vez ao se levantar e antes de dormir.
Sei que havia, dentro dele, além das lembranças que iam, uma a uma, se ligando a milhares de outras, um pedaço velho e sujo de papel. Dizia algo mais ou menos assim:
Era uma vez uma menina chata e mal humorada que, no meio do caminho, encontrou uma borboleta lilás (de cabelos ruivos). Era a borboleta mais bonita e mais interessante. Conhecia lugares distantes, seres fantásticos e falava línguas raras. A menina nunca tinha visto nada igual. Era sobrenatural. Apaixonou-se pela borboleta e até queria guardá-la numa redoma, pois sentia muito ciúme e temia que a borboleta fosse embora, porque aí tudo o que a menina tinha conhecido de belo e puro no mundo se desvaneceria no meio do caos cotidiano. Até que um dia a borboleta voou por outras aragens... e a menina caminhou por outras estradas, sentindo uma profunda melancolia e uma saudade doída demais... Aí elas se reencontraram. As duas tinham mudado. As duas tinham um vazio a preencher... aquele vazio que só se preenche com uma amizade verdadeira... E elas ficaram juntas, pra sempre! Porque sem a borboleta, a menina não passava de uma menina chata e mal humorada. E, sim, a menina ama(va) aquela borboleta maravilhosa! De verdade!
Lamento informar aos desbravadores de segredos alheios que desconheço a origem, objetivo e explicação de tal texto. Suponho, desde que dele tomei conhecimento, que se trate de alguma correspondência secreta e, portanto, escrita em código, o que não é nada relevante, já que, mesmo assim sendo, não se sabe o destinatário, o remetente, nada; nada além de que em determinado lugar, onde isso seja possível, determinada menina e determinada borboleta selaram um pacto de amizade eterna.
Mas ela caminhava.
Brilhos de pequenas estrelas no céu.
Sons de leves gotas nas poças da calçada.
O compasso dos passos equilibrados no estreito meio-fio.
E não eram, esses, os únicos sons daquela madrugada fria e solitária.
Entre pingos e gotas, ela começou a perceber uma música – e que doce era ela! Assim, de início, quase imperceptível, como se quem a executasse estivesse a milhares de quilômetros dali... talvez ela tivesse, finalmente, encontrado o pós-horizonte e essa fosse a música do para todo o sempre. Era uma melodia como os desenhos das nuvens: fascinante e cheia de luz. E era inédita. Nunca, no mundo, alguém já a havia escutado. Era uma música nova, e era composta naquele momento... era, ele, o momento exato da criação. E, embora não a conhecesse – ou a estivesse conhecendo naquele momento -, ela sabia que aquela música lhe pertencia. Era dela. Era um pedaço seu. Era ela. Era, enfim, o que lhe faltava. Era a sua paz. E era mais sublime do que ela mesma ansiara. Ela, a bailarina triste das madrugadas solitárias, inspirava, naquele momento, a mente, o sentimento e os dedos de algum pianista misterioso, que a observava apaixonadamente sem que ela sequer soubesse por onde ele a via. Era ela, agora, uma musa. Era Jeanne despertando seu Amedeo. Um Amedeo que possuía uma visão privilegiada... e que continuava sua ininterrupta música – a música de uma vida. Era a mais bela primeira execução de uma composição que se fazia no momento mesmo em que era ouvida. Era um cântico final.
Com todo o cuidado, ela começou a seguir aquele som, que já se fazia mais perceptível e que a convidava a procurá-lo, sendo, ao final, ele próprio, sua recompensa. Na verdade, estava já agora tão claro e tão próximo, que ela sentiu medo. Era como um daqueles episódios em que os personagens sabem que algo irá mudar suas vidas para sempre... assim, simplesmente sabem – segredo de artista. E era engraçado; afinal, ela mesma havia renunciado sua própria vida, seu passado, em busca de algo, sem tempo a perder, e, agora, assim, tão desprevenida, sentia medo da força que a ligava àquela música, como um cordão umbilical. E ela não tinha poder de escolha, porque aquela música era tudo que lhe restava para aceitar. E o que mais lhe amedrontava era que aquela música lhe dava uma sensação de retorno ao início... e era disso exatamente que ela ansiava desprender-se. Aquela música tinha o poder de levá-la por uma viagem no tempo... e devolve-la ao lugar de onde ela nunca deveria ter saído. As notas daquela música eram as notas da sua vida. Aquela música era a sua vida.
E estava tão próxima, parecia, até, que saía de dentro dela.
Tão próxima.
Aqui, disse a sábia voz. E ela parou.
Era uma porta de madeira. Era imensa. Era, quase, um rochedo. Alguém, certamente, a havia trazido de algum castelo medieval. Essas manias de colecionadores. Estava meio aberta. Medo. Antes de empurrá-la, olhou pelo buraco da fechadura. Engraçado, isso é uma lembrança. Não conseguiu ver nada. Empurrou a porta. Entrou.
Uma sala imensa. Realmente imensa.
A iluminação era fraca. A única coisa que seus olhos conseguiram identificar ali, na penumbra, foi um lindo piano no centro da sala. Apesar de lindo, era um piano normal, desses que só produzem som se alguém dedilha suas teclas. E ali não havia ninguém. Não havia nada além do piano. Havia, aliás; mas que importância tem uma caixinha de música (aberta) sobre um piano quando o que se busca é o artista que, em seus dedos, controla sua vida? Mas, e só então ela percebeu, era de lá – da pequena caixinha sobre o piano – que saía a sua música-lembrança. Era forrada de veludo vermelho e, no lugar da bailarina, havia a figura em miniatura de um rapaz de beleza irrequieta e deslumbrante. Eu já sonhei com esse rosto? Pois era tão familiar. Num canto da caixinha, cuidadosamente dobrado, havia um papelzinho. O que ela leu ali? Só ela poderia dizer. E (e tudo o que sei), então, tudo fez sentido e ela se lembrou de tudo, desde o momento em que havia, alguém, aberto a caixinha e roubado a bailarina para si... a bailarina sem memória que havia caminhado pelo mundo em busca do seu tempo perdido. Ela era, agora, novamente, a bailarina da caixinha de música, não mais caminhos indefinidos a seguir... ela voltaria para sua caixinha e, junto a seu Old man river, continuaria dançando ao som da música da vida... a música que cria o mundo enquanto seu som se faz.
E, como num passe de mágica, a caixinha se fechou.
Uma borboleta lilás: era esse o desenho da tampa da caixinha e a última imagem que tenho daquele aposento.
Espero que nenhum outro viajante, vagante pelo mundo, perceba os acordes da melodia e tente procurá-los no país em que a chuva cai em staccato, pois então a caixinha...
Nesse ponto, fechei o livro.
Não quero continuar, porque não quero que a caixinha de música volte a se abrir e alguma das peças seja novamente lançada pelo mundo com o castigo de vagar em busca de algo que em sua mente não faz sentido quando fora da caixinha. E, se eu não ler, a caixinha não se abrirá. Ela, assim, fica fechada entre as páginas fechadas do livro, dentro da gaveta trancada à chave, enterrada, esta, secreta e cuidadosamente em algum lugar desconhecido, muito além de onde Chapeuzinho encontra o lobo mau. E não contarei a ninguém: essa é a minha promessa. Dentro daquela gaveta fria, pequena e escura existirá, para sempre, um mundo imenso, colorido e cheio de música.
Que eles sejam felizes para sempre.
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